O HOMEM DA FAVELA
Doutor Levi dá plantão no Hospital dos Operários, que fica
perto de uma favela. Ele é meio conhecido na favela porque sobe o morro de
vezem quando, em visita médica à Associação dos Deficientes Visuais. Mesmo
assim, já foi assaltado nove vezes, sempre de manhã, quando está saindo do
pátio em seu carro. Por causa disso, Dr. Levi anda prevenido. Não compra
revólver, mas, ao deixar o plantão, já vem coma chave do carro na mão, passos
rápidos, abre a porta, entra depressa, liga o motor, engrena a marcha, acelera
e dispara. Não se preocupa com os malandros que tentam abordá-lo na estrada.
A neblina prejudica a visão do médico nessa manhã de
inverno. Ele aperta o dispositivo de água, liga o limpador que faz o
semicírculo com seu rastro no pára-brisa. Vê no meio da estrada, ainda
distante, um pedestre que finge embriaguez. O marginal está um tanto
desnorteado, meio aéreo, andando sem rumo, em ziguezague. Parece trazer um
porrete na mão.
Dr. Levi será obrigado a diminuir a aceleração e reduzir a
marcha. Se o mau elemento continuar na pista, terá de frear. Se parar, poderá
ser assaltado pela décima vez. O carro se aproxima do malandro. Ele usa boné
com o bico puxado para a frente, cobrindo-lhe a testa. Óculos escuros para
disfarce, ensaia os cambaleios, tomba um pouco a cabeça, olha um pouco para
cima, procura o Sol que está aparecendo, sem pressa, com má vontade. O médico,
habituado a salvar vidas, tem ímpetos de matar. Acelera mais, joga o farol alto
na cara do pilantra, buzina repetidas vezes. O mau-caráter faz que procura o
acostamento, mas permanece na pista.
O carro vai atropelar o velhaco. Talvez até passe por cima
dele se continuar fingindo que está bêbado. Menos um pra atrapalhar a vida de
gente séria.
O esperto pressente o perigo, deve ter adivinhado que o
automóvel não vai desviar-se dele, ouve de novo a buzina, o barulho do motor
cada vez mais acelerado. De fato, o carro não se desvia de seu intento.
Obstinado, segue seu rumo. Vai tirar um fino.
O vivaldino é atingido de raspão, cambaleia agora de
verdade, cai de lado. O cirurgião ouve o baque, sente o impacto do esbarro.
Vê pelo retrovisor externo a vítima caída à beira da
estrada. O vidro de trás está embaçado, mas permite distinguir o vulto, imagem
refratada.
Gotas de água escorrem pelo vidro, não como lágrimas e sim
como bagas de suor pelo esforço da corrida. Não há piedade, há cansaço.
Dr. Levi nota que o retrovisor externo está torto,
danificado. Diminui a marcha, abaixa o vidro lateral, tateia o retrovisor do
lado de fora. O espelho está partido, sujo de sangue. O profissional se sente
vingado, satisfeito, vitorioso, como se estivesse saindo do bloco cirúrgico,
após delicada operação, na qual fica provada sua frieza, competência,
habilidade. O dom de salvar o semelhante e também salvar-se.
No dia seguinte, ao cair da tarde, chega o plantonista ao
Hospital dos Operários. Toma conhecimento do acidente. O paciente – algumas
fraturas, escoriações – está fora de perigo. Deu entrada ontem de manhã, mal
havia chegado o substituto do Dr. Levi.
Na ficha, anotações sobre a vítima: funcionário da
Associação.
Seus pertences: recibos das mensalidades, uns trocados,
óculos e bengala. Cego.
Texto de Manuel Lobato, in O fino do conto, organizado por
Alcione Ribeiro Leite, Ed. RHJ.64
Nenhum comentário:
Postar um comentário